A Mãe Bomba e as Suas Crianças
por Rui Pedro Saraiva
artigo publicado em 07.07.2003

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No mundo novo, a tecnologia não foi abolida como um símbolo dos excessos do passado, como acontece num zilião de utopias negativas; tornou-se antes numa comodidade rara, a capacidade de a manipular tornou-se a moeda corrente, e é nela que se baseiam as novas distinções sociais. As novas elites não são formadas por intelectuais ou aristocratas mas pelos homens que sabem fabricar óculos e confeccionar cigarros. Um dos arquétipos, Hoppy Harrington, um mutante deformado por um dos testes que antecederam a Grande Catástrofe que inicia o livro, não passava de um cidadão de segunda classe na California segregada dos anos 60, mas a nova ordem vê-o tornar-se o centro de uma dessas comunidades rurais, posição adquirida graças ao seu talento especial para reparar engenhos eléctricos, talento ironicamente apurado pela radiação. Os restantes membros da comunidade tratam-no com deferência e prestam-lhe homenagens públicas, caricaturando a infeliz e inata necessidade do ser humano em encontrar figuras autocráticas. Não é acidental que o mais popular divertimento público desse novo mundo (o substituto das telenovelas) seja a hora de leitura de Walt Dangerfield, um astronauta lançado em órbita no dia anterior à eclosão da Guerra, condenado a girar em torno do planeta até morrer, e que se tornou, por via dos seus meios de transmissão, agora únicos, uma espécie de celebridade global.
O livro que ele lê incessantemente para os milhares de sobreviventes é Servidão Humana, de Maugham. O poder que Hoppy gradualmente acumula (além dos seus dotes técnicos, desenvolve também telepatia e uma estranha forma de telequinese) acaba por corrompê-lo, e revela-se letal, primeiro para a comunidade — onde a admiração depressa dá lugar ao medo e à subserviência — e em última instância para ele.
O outro arquétipo, o Dr. Bruno Bluthgeld que dá nome ao livro ("bluth" e "geld" são palavras alemãs para sangue e dinheiro, respectivamente), percorre a rota inversa. O primeiro capítulo encontra-o num consultório psiquiátrico, balbuciando incongruentes teorias sobre uma vasta conspiração comunista contra a sua pessoa; Bluthgeld culpa-se também pelas mutações que os seus testes causaram, e acredita que ele próprio — numa espécie de osmose emocional — começou a evidenciar alguns dos sintomas de radiação.
A consulta acaba abruptamente, sem outra certeza que não a do leitor de que Bluthged é clinicamente louco. Algumas páginas depois dá-se a Grande Catástrofe, o início e o fim da Terceira Guerra Mundial, tudo num espaço de algumas horas. As grandes cidades são destruídas, grande parte da população é dizimada, e dos escombros floresce lentamente essa nova civilização, onde ratos-mutantes que tocam flauta são valiosas fontes de entretenimento, e carroças puxadas por burros são roubadas por delinquentes, quando estacionadas por muito tempo em locais isolados.
A culpa nunca é directamente atribuída pelo autor, e o leitor não chega a saber se foram ou não os dedos de Bluthgeld a pairar sobre determinados botões, mas para os sobreviventes a dúvida não existe; a culpa do Doutor Dinheiro de Sangue — o ícone do capitalismo científico que para eles significa o passado — depressa se torna dogma. O cada vez mais paranóico doutor (e mais uma vez, a sua paranóia tem razão de ser) é forçado a viver uma existência incógnita na comunidade de Point Reyes, algumas milhas a norte da ruína que outrora se chamara São Francisco, e a mesma comunidade que cai sob o jugo despótico de Happy Harrington.
É essa proximidade que resulta no derradeiro horror que termina o livro. Sem querer revelar muito do enredo para os felizardos que ainda não leram esta história imperdível, convém advertir que o filme Carrie e a trágico-cómica banda desenhada dos X-Men se cruzam nos últimos capítulos, onde um dos personagens verdadeiramente inesquecíveis do livro, um gémeo não-nascido que habita no abdómen da sua irmã, confronta Hoppy, num combate de mutantes que merecia ser condignamente filmado. Holywood tem, nos últimos anos, redescoberto lentamente a oeuvre Dickiana, portanto podemos todos esperar.
Mas a mensagem de Dick é essencialmente positiva, e de um optimismo quase ingénuo: que uma nova espécie de organização social e económica possa surgir dos detritos pós-atómicos tem que ser um dos maiores elogios à capacidade de resistência e adaptação do ser humano jamais postos em forma literária. E não nos podemos esquecer que o livro que retrata esse mundo "Depois da Bomba", apesar de todos os artifícios de terror-série Z, é basicamente uma comédia pastoral, em que os personagens se deparam com os problemas de sempre: adultério, inadequação e competição social, e essa exasperante coligação de objectos e tecnologias que nos mantém a todos em liberdade condicional.
Os autores de Ficção Científica, os bons autores de Ficção Centífica, não procuram fazer previsões sobre o futuro. Isso, quando muito, é deixado aos seus personagens. Neste livro Philip K. Dick não procurou prever um cataclismo nuclear (a data, já agora, era 1972). Como ele próprio escreveu anos mais tarde, numa introdução a uma edição especial do livro na Grã-Bretanha, o cataclismo nuclear era apenas algo que ele esperava a qualquer momento. "Em 1964, eu olhava constantemente para o relógio". O que ele procurou dizer é que a Vida encontra inevitavelmente um caminho alternativo e que o ser humano — mesmo depois de ter assegurado a distribuição equitativa dos meios de destruição do planeta — continua a ser capaz do admirável, admirável esse que os seus personagens encontram reptidamente nos gestos que definem o humano: dar, receber, construir e amar.
Mas Dick era capaz de previsões, desde que lhas pedissem. Em 1981, um editor chamado David Wallechinsky organizou uma antologia chamada The Book of Predictions, em que colaboram cientistas e escritores da época, numa tentativa de antecipar o que trariam as décadas seguintes. A contribuição de Dick foi, para dizer o mínimo, intrigante. Para 1984, previu que os Estados Unidos aperfeiçoassem um sistema para utilizar hidrogénio como fonte de combustível, eliminando a dependência ocidental do petróleo árabe. E para 1997 o estabelecimento da primeira colónia humana em Marte. O Mundo não se ergueu à altura do seu optimismo. Ou, como diria um dos seus personagens, os que estão no poder não nos estão a dizer tudo. Outras previsões, contudo, viriam a revelar-se mais acertadas. Uma linha arrepiante antecipa o seguinte cenário para 1985 (vou citar directamente):
"Antes ou depois desta data, um acidente nuclear de proporções titânicas ocorrido provavelmente na União Soviética, resultará num encerrar gradual de todas as instalações nucleares." Algumas linhas depois, Dick prevê para 1989 o estabelecimento de um vasto meta-computador como fonte para toda a informação disponível no planeta, e para 1996 o uso generalizado de computadores pessoais que transformarão o cidadão comum num perito no processamento de informação.
Não é raro encontrarmos estes pequenos prodígios nos estranhos domínios da FC. Que Dick tenha antecipado Chernobyl e a Internet é, apesar de tudo, menos memorável que o mundo único que ele nos legou na sua ficção. Philip K. Dick viria a morrer em 1982, vítima de complicações cardíacas. Sobreviveu aos cogumelos coloridos dos anos 60, e aos cogumelos atómicos que, durante um tempo, lhe pareceram inevitáveis. Não experimentou a fama — foi só alguns meses depois da sua morte que o filme Blade Runner lançaria o seu nome para o domínio público. Foi um homem estranho e um grande escritor, que se atreveu — na era da escrita experimental — a tratar melhor as suas personagens do que a linguagem.
Sobre o mundo que criou com mestria em Dr. Bloodmoney, e sobre os seus habitantes, escreveu: "O futuro, apesar da guerra, é bom. Gostaria de ter partilhado com eles esse futuro, esse microcosmo, esse pequeno mundo depois da Bomba." O leitor, após assisitir ao noticiário da noite, partilhará esse melancólico desejo.
If it's not Love, then it's the Bomb
The Bomb, the Bomb,
That will bring us together.
The Smiths

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