R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Para Sempre Marte

por Maria Helena Bandeira

conto publicado em 09.08.2002

republicado em 04.08.2003

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Fiquei ali parado, como um idiota, dividido entre a tentação de ficar, mesmo enfrentando a frieza de uma recusa e a vontade de fugir, correr para o meu quarto onde me sentiria outra vez explicado.
Mas ela sorriu, clareando o saguão sombrio com aquele simples gesto quase mecânico.
"Também me sinto só. É estranho tudo aqui. É minha primeira vez..."
Eu já suspeitava e respondi, também sorrindo:
"A minha também. A primeira vez é mais difícil."
Pessoas passavam por nós e pareciam nos olhar com desconfiança e censura, mas não me importava. Depois de muitos meses, neste momento tinha consciência de mim, ou melhor, consciência de ser alguém separado da dor e do desespero.
Caminhamos para o salão comunitário do andar. Como eu previa, estava vazio e poderia, talvez, fazer algo que já me parecia tão distante de mim que nem sabia se ainda seria capaz de realizar - conversar com outro ser humano, especialmente uma mulher.
Outra vez percebi que, finalmente, conseguira pensar nesta palavra sem sofrer.
Olhei para o distintivo brilhante que ela trazia no peito e que a identificava como passageira. Estava escrito: LARA (TERTIA NONUS - ALEXANDRÓPOLIS) Uma cria de Alexandrópolis! Que incrível coincidência! Fúlvia também fôra clonada lá. Eu não pertencia à linhagem dos clones, era um humano absoluto, meus pais biológicos preferiram a sorte. Foi minha herança por ter nascido de dois artistas famosos da cena holográfica de New New York. Excentricidade permitida às celebridades do showbiz. Não sei precisar até que ponto isto me tornou singular. Nunca me senti menos capaz do que os outros e, profissionalmente, minha diferença me ajudou a ser o mais criativo publicitário da UNIC. Estou aqui com meus próprios recursos, o que não parece ser o caso da maioria. Quase todos são sócios do PASEM (Para Sempre Marte), plano pago pelos empresários como forma de ter funcionários presos a si pelo resto da vida.
Lara me olhou espantada, pois eu estava quase rindo - uma heresia, consideradas as circunstâncias.
-oOo-
Desembarco em Marte com Lara, atravessando os túneis envidraçados que permitiam ver o que cinquenta anos de colonização terrestre tinham feito pelo planeta vermelho. Havia uma vegetação luxuriante sob a semi-esfera, que quase não era percebida na claridade artificial da manhã. Nada da aridez desoladora que ainda existia em grande parte do planeta. Tudo parecia claro, perfeito, como um quadro campestre. Um funcionário nos indicou o Hotel na Semi-esfera 3 onde éramos aguardados nos aposentos selecionados previamente pela Companhia Marciana.
Seguimos de mãos dadas, com a intimidade que partilhávamos desde a nave. Amar Lara havia sido fácil ali, como seria em New New York. Éramos ambos romanos. Não havia porque fingir preconceitos. Silenciosamente agradeci a meus pais por ter nascido patrício e não servo. A vida dos clones de serviço era bem pior que a dos andróides. E ainda havia toda aquela questão da castidade que estava sendo discutida no Parlamento - clones de serviço podem ter vida sexual ativa? Tudo bobagens. Foram criados para servir e não reclamavam, porque esta demagogia em torno do assunto? É só uma questão de angariar mais votos para o Conselho. Eles mesmos não estão nem aí para os políticos. São dóceis e meigos como cordeiros. Como cordeiros... um arrepio me percorreu a espinha, justamente quando o andróide de serviço na portaria conferia na máquina nossas credenciais. Não era negro, mas de aparência oriental. Sorria protocolarmente e nos passou o cartão do quarto duplo que encomendamos.
Haveria uma certa ironia naquele sorriso?
Acho que não. Andróides não costumam ter sutilezas. A ironia é própria dos patrícios e dos clones superiores. Na verdade, nunca se sabe o que pensam os andróides. Novamente um arrepio me percorreu.
O hotel era luxuoso, mesmo para os padrões terrestres, embora austero, mantendo o dourado e o violeta da nave. Eu só queria entrar, tomar um banho aromatizado de vapor e amar Lara pela primeira vez em solo marciano. Ela olhou para mim e parecia estranha, distante. Eu também estava distante, eu também me sentia estranho. Mas não queria pensar no que nos aguardava.
-oOo-
Lara me acorda antes da voz artificial:
"Querido..."
Gostava de ouvi-la me chamar assim. Parecia tão anacrônico e tão longe da realidade que nos cercava...
"...Está na hora."
A realidade voltou, brutal, diante de mim. Levanto-me num pulo, evitando tocar na maldita prancha metálica. Não quero pagar por um café que nenhum de nós pretende tomar. Olho meu rosto no cristal reprodutor e amplio minha imagem até mostrar a menor imperfeição a ser corrigida pelo laser cosmético. Apesar de tudo minha aparência é razoável. Programara rosto sem barba para toda a viagem e não precisava me preocupar com este aspecto mesquinho que os andróides adoram cultivar. Não sei porquê, apreciam o ato de fazer a barba. Penso que o renascimento cotidiano dos pelos lhes dá uma ilusão de humanidade. Sei lá o que se passa por estas cabeças estranhas.
Lara sai do banheiro radiosa como sempre, um produto perfeito da engenharia genética.
Estou me sentindo amargo. É compreensível. Ela também parece triste e defendida. Abracei-a quase maquinalmente e entrei no banheiro para terminar de me arrumar.
Quando a voz inundou o quarto, já estávamos prontos para descer. Tomamos a esteira rolante e nos dirigimos ao saguão. Havia muita gente lá, todos em um silêncio quase assustador, organizados em fila, nos trajes preto e violeta da Companhia Marciana. Fomos identificados e nos dirigimos a nossos lugares no grupo.
Alguns iam para estágios inferiores. Eram os trabalhadores de categoria mais simples. Outros, a chamada classe média oriente-americana, ficaria nos estágios intermediários. Lara, como eu, fôra encaminhada ao nível superior. Espantei-me um pouco porque, embora romana e patrícia, não parecia pertencer à elite. E aquele era um luxo para poucos. Procurei disfarçar e nos dirigimos na esteira para o grande edifício da Partida, uma construção baixa e maciça. Bela e soturna como convinha. Não tinha os rebuscamentos de alguns exemplares da arquitetura marciana, apenas alguns vitrais coloridos, quebrando a monotonia dos cinzas.
O pavilhão destinado à elite tinha uma entrada separada, um arco perfeito de mármore negro onde a esteira mergulhava como na goela de um dragão.
Segurei a mão de Lara. Estava gelada. Eu também sentia um frio no estômago e suava como se não estivesse num ambiente perfeitamente climatizado.
Logo após o arco da entrada, entramos num grande corredor dourado, esculpido com motivos barrocos. Colonial, pensei. Lembrava ainda as aulas de Arquitetura da Antiguidade do Centro Integrado. Um período que me parecia tão longínquo como as próprias volutas das paredes. Um tanto opressivo, embora belíssimo. Não havia música neste trecho e agradeci por isto, nem sei bem porquê. A esteira percorreu lentamente o corredor e o brilho dourado se refletia em nós. Tinha a sensação de fazer parte de um grupo de estátuas de bronze. Ninguém fazia o menor movimento, a tensão era palpável como uma névoa triste em torno de nós.
Finalmente, atingimos o salão principal, recoberto até o teto de uma espécie de veludo negro.
Olhei para os outros. Umas vinte pessoas, no máximo. Todos calados como peixes. Entramos e nos sentamos nas confortáveis poltronas, dispostas em semi-círculo, diante do estrado negro e violeta.
Havia cerimônias individuais, mais caras, mas não me achava em condições de agüentar uma dor solitária. Acompanhado, de alguma forma, a coisa parecia menos terrível. Pedira apenas, como um favor especial, que fosse o primeiro. Seria atendido, claro. Para isto serviam conhecimentos e parentescos.
Meus nervos estavam tensos a ponto de se rasgar. O coração bateu acelerado quando as luzes se apagaram e a música foi iniciada. Não reconheci aquela melodia, tristíssima, que lembrava as canções árabes de séculos atrás. Deve ter sido feita especialmente para a cerimônia. Do alto surgiu uma luz suave, branca, quase fantasmagórica, que iluminou o estrado, e dele foi subindo, de forma quase irreal, a figura delicada daquela que fôra o centro de meus pensamentos nos últimos anos.
Estava vestida com uma túnica branca, leve, apertada por um cinto de metal com pedras preciosas. Os cabelos escuros, presos por uma rede finíssima de pérolas, brilhavam. Ela tinha a aparência luminosa de antes da doença, com os lindos olhos azuis abertos, porém vagos. Um meio sorriso entreabria seus lábios e o aspecto todo era de uma jovem mulher sonhadora. Parecia viva e não congelada como estava, além da parede de vidro, tão fina que era impossível ser detectada, que nos separava da câmara de criogenia. Um trabalho verdadeiramente profissional.
Esta encenação era necessária para que os parentes ricos, ou os funcionários das empresas, continuassem a pagar as prestações do dispendiosíssimo plano Para Sempre Marte, garantindo que seus amados permaneçam lá, congelados, no Planeta Vermelho, à espera de um possível despertar, quando a ciência tiver vencido as doenças e a morte.
Todos os associados têm direito a, pelo menos, uma viagem para rever os entes queridos.
Começo a me sentir estranho. Os ouvidos zumbem. Mil abelhas furiosas disputam espaço dentro deles. Meu corpo parece estranhamente plácido, mas uma dor se insinua no centro do plexo solar e se irradia para o braço esquerdo, sorrateira, uma enguia gelada de agonia.
A música se torna mais intensa, triste, totalmente apropriada para o momento e, no meio da minha impossível dor, mais uma vez, tive que reconhecer a eficiência deles.
Isto pouco antes de cair, morto, no chão brilhante do Auditório Número Um.
Agora estão me preparando para o congelamento. Sei de tudo e, no entanto, não estou lá. Meu cérebro preservado permanece aqui, junto de Flávia, no sofisticado Laboratório Marciano.
Algum dia nos reencontraremos. Eu e o meu corpo. Não sei se será um bom dia.
Tudo é possível no futuro. Até a felicidade.

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Para Sempre Marte

in O Planeta das Traseiras

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