R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Uma Noite na Periferia do Império

por João Barreiros

conto publicado em 26.06.2002

republicado em 01.11.2003

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O Embaixador Cultural dos Croap'tic, Sua Senhoria CantoFranco, desembarca no novo astroporto da Portela com as penas da cauda todas ensarilhadas. A culpa não é sua, dado que costuma gastar horas entregue aos cuidados da higiene, mas sim das piruetas aviónicas que o vaivém orbital sofreu para se escapar ao caos ascendente de outros módulos pilotados por IAs perfeitamente stressadas pela greve dos controladores. As pobres patas, protegidas pelas placas ornamentais da Guilda dos Bem Pensantes, mal o sustentam, agora que são obrigadas a suportar uma carga adicional de vinte quilos de ossos, mais equipamento de sobrevivência em ambiente hostil, além da cápsula criogénica onde viaja, ainda arrefecido à temperatura do nitrogénio líquido, o seu fiel servo proto-braquiante Chirptic.
Estarrecido, em pleno centro do hall de chegada, com o berlinde negro dos olhos todo arremelgado em busca de um qualquer funcionário que lhe possa oferecer um mínimo de indicações, o Embaixador contempla um piquete de controladores aéreos em greve. As criaturas, de punhos erguidos, com os crânios rapados cheios de fichas de integração, desfilam de um lado para o outro, sacodem cartazes de protesto que o mini tradutor semântico acoplado ao nervo óptico sugere tratar-se de algo parecido com: MAIS TRABALHO PARA OS CIRCUITOS HÚMIDOS, ABAIXO AS COISAS DURAS! Enfim, frases provavelmente destituídas de qualquer conteúdo semiótico.
Humanos correm apressados, em círculos, sempre a sacudir maços de formulários, como se não tivessem mais nenhum objectivo na vida senão circular assim, a esmo, através da imensidão da sala. Alguns deles, periclitantes, sujeitos à universal praga da senescência e entropia, deslizam amarrados a cadeirinhas cheias de circuitos a piscar, enquanto outros, mais atléticos, exibem bíceps e glândulas mamárias a quem por bom preço lhes queira mexer. Aqui e ali, dispersas no meio da turba, umas quantas matriarcas com crias de assalto no arrasto esbofeteiam-nas, para melhor estimularem os vagidos de guerra (pelo menos é essa a impressão do Embaixador), e em resposta as crias berram, desalmadas, sacudindo desintegradores de plástico, espadas laser, ou placas de jogos de simulação entre os dedinhos sapudos.
O bando de alienígenas comprime-se, mistura-se, dilui-se, numa azáfama de sons, de insultos, de perfumes sintéticos supressores da agressividade e baforadas involuntárias de feromonas sexuais. E como se tudo isto não bastasse, como se não bastassem os berros de agonia dos controladores a serem perseguidos por descargas electrostáticas que chovem do alto, os altifalantes direccionais invectivam ordens incompreensíveis aos ouvidos delicados do Embaixador.
CantoFranco inclina para trás o pescoço serpentóide, torce-o como costuma fazer na Embaixada para reclamar a atenção dos mal-nascidos, desdobra as penas da cauda para mostrar a todos como é perfeita e sublime a antiguidade da sua estirpe, e é precisamente nesse instante que uma das crias de assalto se chega junto dele à socapa, e cobardemente lhe arranca uma das ditas penas que demoram dez anos standard a crescer. O Embaixador berra, os controladores aéreos, lá mais ao fundo, fazem coro mas por outros motivos, os altifalantes insistem nas ordens subliminais, e o puto, com o prémio levantado na mão, desaparece no meio de todo este caos para nunca mais ser visto.
Por todo o lado, contra as paredes distantes, um pouco abaixo do tecto invisível, vêem-se hologramas a invocar o nojo de bocas carnudas e escancaradas a descobrirem o marfim das presas necrófagas, ou então corpos humanóides seminus, sem o mínimo tufo decente de penugem, abraçados a artefactos tão brilhantes e polidos quanto eles. O Embaixador adeja uma das asas, abre o bico para trinar um cântico de chegada, para se dar a conhecer, se é que alguém resolveu vir buscá-lo, mas depois lembra-se de que está aqui incógnito, em visita secreta e discreta a esta capital terciária perdida num braço periférico da Galáxia.
Ei-lo enfim num mundo exógeno onde a evolução sofreu regras aleatórias. Ei-lo no único planeta conhecido onde os braquiantes são sofontes de pleno direito. Sofontes e agressivos, ainda por cima, como se não fizessem a menor ideia do respeito que se deve a quem lhes é superior.
Resignado, o Embaixador poisa a cápsula criogénica no meio do chão, espadana as asas para ver se espanta os mirones mais afoitos, trina o código de acesso aos selos de pressão e, obediente, a mala desfaz-se em duas, jactos de vapor condensado escapam-se, discretos, em novelos de geada, o pseudo-útero rasga-se a meio, deixando emergir a forma entorpecida do Chirptic.
Ao despertar, o proto-braquiante espreguiça-se, enrola a cauda à volta da cintura e corre a abraçar a pata escamosa do Embaixador.
- Mestre! Ai Mestre, que alegria... - clama num guincho que é suposto ser trinado - Um belo jardim florido para ti... Uma manhã cheia de frutos maduros... Uma melodia territorial ao fim da tarde... Que nunca o teu ninho fique sujo pelas fezes de um...
- Já chega! - responde o Embaixador, embaraçado pelas efusões afectivas do seu familiar. À sua volta, o círculo de humanos ainda não deixou de crescer. Há quem sacuda punhos, exiba dedos médios entre dois dedos encolhidos e debite frases que o tradutor se recusa a traduzir. - Pega nas bagagens. Liga o amplificador gnóstico... Preciso de todas as tuas funções cognitivas em actividade máxima. Agora vê lá se consegues descobrir o caminho até ao Controlo Alfandegário...
Dias antes, ainda em órbita, o Embaixador foi avisado que as alfândegas da Terra se tinham transformado num tormento de minúcia burocrática. Todos os viajantes não-humanos eram, por força das circunstâncias, forçados a preencher manualmente nem mais nem menos do que trinta impressos. Juras de honra, seguros de vida, declarações de consumíveis, isenções de responsabilidade e imunidade bacteriana, afiliações políticas, para tudo havia papelada. Actividades que um Croap'tic, com apenas dois dedos vestigiais, nunca conseguiria levar a cabo se não fosse a fiel prestação de serviços da espécie quase sofonte dos Chirptic.
E o Chirptic, finalmente terminadas as saudações de respeito hierárquico, de olhos arregalados perante a presença de tantas criaturas gigantescas, é certo, mas tão parecidas consigo, põe-se a pensar, aterrado, no que seria viver num mundo assim, um mundo sem Mestres, um mundo onde as aves (assim lhe contam os sensores gnósticos), nunca chegaram a atingir um grau sofôntico digno de nota. Um mundo ao que parece quase sem jardins, sem penas, sem ninhos, sem a honra sublime de nos podermos deitar sobre os ovos do nosso Mestre...
- Estou à espera... - trina o Embaixador, irritado, com as unhas a rasparem contra o lajedo do átrio. As penas à volta do pescoço insuflam-se para mostrar quem manda em quem. Quanto às da cauda, CantoFranco mantêm-nas discretamente recolhidas, não vá outra criança de assalto provocar novas depredações.
Aterrado, a verter gotículas de urina odorífera, o Chirptic agarra nas pegas das malas flutuantes e apressa-se na direcção do corredor que os implantes lhe dizem ser a saída. Atrás dele seguem alguns populares mais afoitos. Abaixo, abaixo, zona anal, vociferam alguns. O Chirptic não entende os motivos de tanta comoção. Melhor assim. O seu dever é estar atento aos desejos do Mestre e ignorar todas as distracções periféricas a este problema principal.
O funcionário da alfândega, com os olhos perdidos na placa do scanner, mal levanta a cabeça.
- Têm licença de importação de animais domésticos? Essa criatura foi devidamente desparasitada? Traz piolhos? Desinfectou as penas?
- Kroak! - esganiça-se o Embaixador absolutamente chocado, incapaz de articular qualquer expressão inteligível. - Insulto racial! Abominação! Crime genético!
O Chirptic arregala os olhos lemurianos. As mãozinhas peludas tamborilam sobre o tampo da mesa, ansiosas por resolver a gafe do funcionário:
- Respeitável agente desta tão nobre raça, peço perdão por ousar corrigi-lo, mas em boa verdade sou eu o animal doméstico. O polegar oponível de Sua Senhoria. O seu companheiro fiel e esforçado. O meu grau sofôntico, convenhamos, é mínimo. Os meus raciocínios só existem por integração directa com os lobos pré-frontais do meu Mestre Bem Amado...
- Ai sim... Quer dizer que é o criado desse pavão? Bom, há gostos para tudo... Vocês, os Exóticos, são tantos... E depois adoram fazer caixinha como se nós fossemos obrigados a saber quem é que pertence a quem... Olhe, confusões destas acontecem... Bom, mas vamos lá ao que interessa... Papéis! Documentos! Certidões! Certificados!
CantoFranco ergue o pescoço num movimento serpentino. Asas espadanam, libertando micro-penugens que se vão alojar nos canais respiratórios, já de si saturados, do humano. Garras raspam a alcatifa puída. Os olhos do funcionário começam a brilhar com uma expressão cada vez mais maldosa, enquanto o Chirptic, frenético, com uma das maletas abertas sobre o tampo da mesa, vai procurando, em desespero de causa, todos os formulários que lhe foram confiados durante a estada na Estação Orbital.
- Este incidente não ficará atolado no silêncio aquiescente dos bem pensantes... - insiste o Embaixador, indignado. - O seu comentário provocatório só pode revelar duas coisas. Ou o senhor ignora por completo o exercício das suas funções, ou resolveu insultar-me com um comentário etnocêntrico. De qualquer modo espere por uma queixa...
- Meu Senhor... Mestre... Cautela, que o vosso transtorno pode perturbar o exercício rítmico dos vossos inefáveis papos... Peço-vos que vos acalmeis... O stress nervoso...
O agente alfandegário arreganha as mandíbulas. Bocadinhos de matéria orgânica semi-mastigada espreitam entre os caninos.
- Com que então querem reclamar? Óptimo! Adoro Exóticos que reclamam. Mais formulários para preencher num português escorreito e inteligível, se fizerem favor. É necessário que a queixa seja devidamente explicadinha. E qual dos senhores é o queixoso, uhm? Sim, porque os regulamentos exigem absolutamente que qualquer queixa étnica seja feita apenas pela vítima... Neste caso específico, qual dos dois cavalheiros é a parte que se considera lesada?
- Kroak! - grasna o Embaixador sem nenhuma harmonia na voz.
- Serenidade, Mestre! Paz, Mestre! Um céu luminoso, Mestre! - chia o Chirptic, o proto-braquiante. - Respeitável humano, o Mestre não tem dedos... Como pode ele pegar numa caneta se...
- O problema não é meu. Ele que se amanhe. Pelos vistos, - comenta o funcionário com uma piscadela de olho para os colegas que não perderam pitada da cena - temos assunto para muitas horas...

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Uma Noite na Periferia do Império

Incluído em:

Inconsequências na Periferia do Império

coord. André Vilares Morgado

Câmara Municipal de Cascais

1996

João Barreiros escreveu:

 

A Verdadeira Invasão dos Marcianos

Editorial Presença

colecção Viajantes no Tempo

2004

 

Terrarium

com Luís Filipe Silva

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1996

(leia a crítica de Jorge Candeias)

 

O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1994

(leia a crítica de Jorge Candeias)

 

Duas Fábulas Tecnocráticas

edição do autor

1977

(leia a crítica de Jorge Candeias)

 

Prefácio a

O Planeta das Traseiras

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