R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Uma Noite na Periferia do Império

por João Barreiros

conto publicado em 26.06.2002

republicado em 01.11.2003

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Mal poisa a pata no passeio e eis que Sua Senhoria se vê rodeado por uma turba de funcionários humanos com máscaras de galo enfiadas na cabeça. Os funcionários tentam agarrar CantoFranco por uma das asas e puxá-lo para o interior do prédio onde hologramas de galinhas cacarejam e esgravatam a terra que cobre o pátio de acesso, com um sacudir de cristas que é suposto ser do mais profundo erotismo.
Sem saber o que fazer, o Chirptic chia e dá umas quantas corridinhas do Mestre para o chumaço de bagagens e das bagagens de volta ao Mestre.
- Entre, entre, entre... estas ruas não são seguras à noite... - dizem os pseudo-galináceos, nervosos e agitados, com os olhos a percorrerem as alamedas de momento desertas. - Divertimento absoluto ali dentro... preços acessíveis... todas as perversões disponíveis... Temos peruas, pavoas, moas e avestruzes em stoque, se não gostar das nossas frangainhas. Existe uma sala de espera confortável com saguins fêmeas para o seu... unh... ajudante...
- Não... não... - insiste Sua Senhoria, de unhas fincadas no lixo que cobre o passeio. - Não era isto que eu...
E depois é o caos. Da sombra de uma das vielas laterais emerge um grupo de humanos armados até aos dentes. Trazem enfiadas na cabeça máscaras de gorila. Nas T-shirts negras, reluz um texto incompreensível: DOWN WITH GODZILLA! KING-KONG LIVES!
Os funcionários/galos berram de susto e correm a esconder-se no interior do prédio. Barreiras metálicas descem do alto, vedando todo o acesso ao interior. Poucos segundos bastam para que Sua Senhoria CantoFranco e Chirptic, o seu fiel extensor comunicativo e operatório, fiquem cercados por todo um conjunto de odores que tresandam a morte e agressividade. Braços musculados encostam o Embaixador contra a parede tracejada pelos vergões de queimaduras recentes. Outros pegam no Chirptic ao colo e dão-lhe palmadinhas amigáveis nos ombros esguios.
- Estás liberto, camarada! - sussurram-lhe aos ouvidos. - Terminou a opressão étnica!
- Mas...
Aterrado, envolto numa nuvem de minúsculas penugens que se lhe desprenderam do corpo, CantoFranco não percebe nada da situação em que o meteram. O bico entreaberto deixa escapar alguns piados aflitos. Separaram-no dos seus dedos. Mas porquê? Porquê? Em desespero de causa, estica o pescoço, disposto a trinar um cântico de paz, amor e reconciliação entre as espécies.
- Cautela! - exclama um dos membros do grupo. - O cabrão vai atacar...
- Morte aos esclavagistas! Morte aos neo-colonialistas!
E o grupo inteiro faz fogo sobre o Embaixador. Uns disparam lasers calcinantes. Outros, tambores de micro-flechas. Alguns, umas quantas balas de ponta oca. Sangue exótico desenha ideogramas contra a parede ultrajada. Penas esvoaçam a esmo. Um fedor a fezes, cordite e ar ionizado avassala a rua.
- Execução terminada! - troa um dos comandos King-Kong. - Longa vida às Brigadas Negras da Libertação das Espécies Oprimidas! Morte a todos os opressores das glândulas mamárias! Vitória ao polegar oponível!
O Chirptic encontra-se em estado de choque. Nem quer acreditar que o seu Mestre acabou de ser assassinado perante os seus olhos. Aliás, isso é coisa que pouco importa. Terminada a ligação neuronal com o córtex do Embaixador, poucas funções cognitivas restam ao simbionte. Um fiozinho de urina perfumada escorre-lhe entre as pernas. Perdeu a capacidade de pensar, de falar... As cordas vocais, agora, só emitem vagidos de medo.
Um dos comandos para a Libertação das Espécies Oprimidas ajoelha-se junto dele e abraça-o num amplexo de irmãos: - Agora estás livre e senhor do teu destino, companheiro. Vai e vive em paz a tua vida. Aprende a pensar por ti e a utilizar as mãos em teu próprio proveito e no da tua espécie...
O Chirptic arregala ainda mais os olhos lemurianos. Ei-lo abandonado num mundo incompreensível feito de formas luminosas, odores e ruídos destituídos de nexo semântico. As mãos fecham-se e abrem-se sem que haja por ali um ramo a que se possam agarrar.
- Então, camarada? Não se agradece?
A compreensibilidade do universo esvai-se. Por fim, já nada resta a não ser o medo.
O medo e um calor húmido a escorrer-lhe pelas pernas.
- Xipiticific... fez xixi... - responde o Chirptic enfim liberto.

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Uma Noite na Periferia do Império

Incluído em:

Inconsequências na Periferia do Império

coord. André Vilares Morgado

Câmara Municipal de Cascais

1996

João Barreiros escreveu:

 

A Verdadeira Invasão dos Marcianos

Editorial Presença

colecção Viajantes no Tempo

2004

 

Terrarium

com Luís Filipe Silva

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1996

(leia a crítica de Jorge Candeias)

 

O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias

Editorial Caminho

colecção Caminho Ficção Científica

1994

(leia a crítica de Jorge Candeias)

 

Duas Fábulas Tecnocráticas

edição do autor

1977

(leia a crítica de Jorge Candeias)

 

Prefácio a

O Planeta das Traseiras

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