Uma Noite na Periferia do Império
por João Barreiros
conto publicado em 26.06.2002
republicado em 01.11.2003

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Milhares de batimentos cardíacos depois, junto às comportas exteriores do astroporto, com todos os problemas resolvidos da melhor maneira possível, o Chirptic atreve-se a perguntar ao seu Mestre e Senhor:
- Perplexidade neste triste eu. Porquê tanta agressão da parte dos humanos? Humildemente requisito a explicação de tal mistério...
- Questões etnocêntricas que ultrapassam as tuas capacidades cognitivas... - responde o Embaixador num daqueles acessos magnânimos de pedagogia. - Os humanos evoluíram sozinhos, sem a ajuda dos avídeos. Levam a mal que não haja na Galáxia conhecida mais nenhuma espécie mamária que tenha passado pelo mesmo processo evolucionário. Em boa verdade, não gostam de saber que os braquiantes são nossos servos.
- Mas Mestre, a nossa função é sublime... Servimos de mãos aos melhores entre os melhores... Fabricamos artefactos que outros conceptualizaram... E somos tão felizes...
- Eu sei, meu bom Chirptic, - responde o Embaixador, cobrindo a criatura lemuriana com uma das asas em sinal de intimidade. - Eu sei que vocês não desejam ser outra coisa do que aquilo que já são. Mas estes arrivistas, estes humanos, desconhecem isso. Estão a projectar sobre nós complexos de natureza...
Infelizmente, o Embaixador não tem tempo para terminar este discurso tão edificante. De súbito, ei-los rodeados por vinte taxistas frenéticos, com luzinhas de presença a cintilarem-lhes sobre os bonés. "Taxi, senhores?", "Guia, senhores?", "Faço descontos especiais no transporte das bagagens, senhores", "Comigo, os animais de estimação têm tratamento VIP, estimados cavalheiros", "Por aqui, chefes", "Mais lá ao fundo, parceiros"...
O Embaixador olha em volta e só vê casacos de simil-couro, bonés luminescentes, dentes rasgados e dezenas de mãos a erguerem-se na direcção das bagagens flutuantes. O Chirptic chia, esganiçado, a correr de um canto para o outro, tentando salvar as malas, tentando proteger com o corpo esguio a vastidão portentosa do seu Mestre.
Por fim triunfa quem mais forte é. Um taxista possante, energisado por anos de esteróides anabólicos, pega no Chirptic em peso e arrasta-o na direcção do hover-taxi arrumado em cima do passeio. Aterrado perante a eminência deste rapto, Sua Senhoria CantoFranco segue logo atrás, de asas abertas, aos pulinhos, a piar. E as bagagens, obedientes, soltam-se das mãos que as prendiam e lançam-se a voar num voo rasante na peugada do grupo.
É noite, neste lado do mundo. O ar tresanda a gorduras cozidas. Para as bandas do astroporto ouvem-se os estrondos dos módulos orbitais a devorar ozono. Lasers de ejecção rasgam a treva sebosa num tracejado actínico. Em nenhum lado perpassa a sombra do perfume a jardins.
Depois de ter guardado a bagagem no respectivo compartimento do hover-taxi, o motorista senta-se aos controlos e aí fica sentado, durante vinte minutos, a dedilhar no volante. No assento traseiro o Chirptic tirita de medo, enquanto Sua Senhoria solta piados confrangedores de agonia.
- Então? - pergunta-lhes o taxista ao fim de meia hora de espera. - Decidimo-nos ou não? Olhem que o tempo está a contar...
- Decidir o quê? - responde o Chirptic, manifestando em viva voz as interrogações silenciosas do seu Mestre.
- Para onde querem ir? Hotel ou passeio? Negócios ou prazer?
- O Mestre pretende visitar a vossa heráldica cidade... - explica o proto-braquiante. - Está aqui incógnito, a prospectar terrenos para a edificação de futuras Embaixadas... quer ver coisas novas e esteticamente correctas.
Ziiip!, eleva-se o vidro de defesa entre o assento traseiro e o do condutor. VROOOM!, explode o turbo do taxi, activado com toda a energia de quem é profissional nestes assuntos. O veículo arranca, comprimindo os passageiros contra os estofos. Através do retrovisor, os olhinhos do motorista ora piscam, ora cintilam, maldosos. Os lasers da Portela contraem-se na distância.
- Com que então uma visita cultural? Quer ver frangas? É isso? O seu patrão veio despejar as gónadas em terra alheia? Unh?
- Não percebo a alusão... - queixa-se o Chirptic. - Frangas?
- Cheira mal... - protesta Sua Senhoria, indiferente a tudo, num português arrastado.
- São os Olivais a arder... . - explica o motorista. - Os meus amigos já repararam naquele clarão ali ao fundo? Estamos muito próximos da zona catástrofe. As autoridades andam a incinerar as zonas contaminadas pelas bactérias plastofágicas. Se quiserem saber a minha opinião, isso não serve de nada. Os vendavais provocados pelos disparos dos módulos orbitais só ajudam a dispersá-las por toda a Lisboa...
- Biohazard... - concorda o Chirptic. - Situação característica em Culturas de Grau 3...
- Parvalhões... - rosna o taxista entre dentes, rasando a poucos milímetros a forma bojuda de um camião carregado de nitrogénio líquido. - Mal chegam e já começam as bocas foleiras...
Lisboa, aos olhos do Embaixador, é uma cidade feita de rombos de negrume, prédios semi-demolidos, chumaços de vegetação parasita e pirâmides bancárias a ferver soluções de lucros rápidos. Arames farpados separam os bairros meio destruídos dos zigurates luminosos dos Centros Comerciais. Por fim, o hover-taxi imobiliza-se junto a um prédio da cidade antiga. O bloco ancestral foi pintado de novo com nanotinta e os pigmentos móveis desenham na fachada apelos em três línguas galácticas:
FRANGAS FRANGAS FRANGAS FRANGAS
SHOW ERÓTICO PARA EXÓTICOS
- Chegámos! - informa o taxista, travando mesmo em frente das portas abertas de par em par. - Gosta de dar cabo delas? Estoirar as gajas com uma Uzi? Torcer-lhes os pescoços? Degolá-las? Saltar-lhes para a espinha?
- Perdão? - pergunta o Embaixador. - Não percebi nada.
- Sua Senhoria está perplexa. - diz o Chirptic a saltitar sobre o banco traseiro, com os olhos esbugalhados. - Não entendeu o significado cultural deste empreendimento que ora visitamos, honrado funcionário dos transportes urbanos... Não se importava de esclarecer...
- Olhem, meus meninos... - replica o condutor, a acariciar a caixinha electrónica do taxímetro, que ainda não deixou de contar Euros. - Galinhas mutantes, topam? Estúpidas galinhas gigantes que só servem para uma coisa. Criadas especialmente para vocês, os Exóticos...
- Horror... horror... - sufoca Sua Senhoria absolutamente ultrajado pelo que ouviu.
- O Mestre está perturbado... - geme o Chirptic. - E quando o Mestre está perturbado, eu... as minhas capacidades gnósticas... sofrem... um decréscimo...
- Vamos lá a pagar e a sair... Vir aqui comer as gajas é o que vocês mais querem neste mundo... ou julgam que eu não sei? - ameaça o taxista, apontando para um orifício onde é suposto enfiar-se o cartão de crédito. - Olhem para esta Amélia a torcer o bico e a armar-se em fino... Porquê? Então não gosta das nossas galinhas? São estúpidas, mal sabem falar. Mas bem boas e apetitosas. Vocês dão cabo delas e depois a malta assa-as no churrasco...
- Horror... - insiste o Embaixador.
Entretanto, resignado, o Chirptic paga o preço escandaloso da corrida (vinte vezes mais do que a tarifa habitual), abre as comportas, assobia às malas e ajuda o Embaixador a descer do turbo-taxi.
- Põe-te nelas, oh pavão! - grita-lhes o taxista antes de arrancar no meio das alamedas desertas. - Aproveita enquanto podes...

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