R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Se os Olhos Pudessem Matar...

por Daniel Alvarez

conto publicado em 24.09.2001

republicado em 31.01.2004

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Ora, antes do contato com a humanidade e o Império, já havíamos colonizado toda a vastidão que circunda Caril, um sistema duplo e muito maior do que o diminuto Sistema Sol. Além disso, já havíamos unificado a cariléia sob um único governo, bem ao contrário da humanidade, que precisou do incentivo ry'whax para se unir e que sequer explorava economicamente a nuvem cometária de seu sistema natal quando da chegada daquela malfadada flotilha de avassalamento...
Os humanos adoram jactar-se para as espécies recém-contatadas de como salvaram todos os povos da antiga Aliança com seus inventos maravilhosos, como o gerador de buracos negros e os canhões de transição. Não que esses sistemas de armas tão tenham sido muito importantes e, porque não dizer, revolucionários. Contudo, eles sempre se esquecem de mencionar que na hora mais negra da Aliança, quando todas as outras espécies já haviam perdido a esperança na humanidade e na cariléia, foi graças ao Defletor Gul, uma invenção carily, que a Armada Aliada não foi reduzida a partículas subatômicas em questão de décadas pelos canhões hipercósmicos, um invento arcano com que os n'ghartfs presentearam os ry'whaxers nos tempos de Sglanghen o Grande.
Com o fim da Guerra, a Aliança de Extermínio foi dissolvida e a Federação Humana e a União Carily estabeleceram um tratado de paz com a Confederação N'ghartf. Desde então, a paz tem reinado neste braço da Periferia.
Como muitas outras jovens carilybits, eu acreditei que chegara a hora de pararmos de concordar cegamente com a política expansionista dos humanos.
Desde o término da Guerra, houve um acordo tácito entre os povos aliados — tanto nós e os humanos, quanto os ex-vassalos libertados do Império — pelo qual a humanidade e a cariléia atuariam como uma espécie de força policial da Associação Livre, com a responsabilidade de defender as espécies-membro contra qualquer eventual ameaça externa, bem como impedir que dois ou mais membros agredissem uns aos outros.
Contudo, isto foi há mais de nove séculos. De lá para cá, até quarenta anos atrás, nada no ambiente galáctico pacífico da Associação Livre parecia justificar a existência desse aparato militar tão poderoso.
Até que os jkleii voltaram...
—oOo—
A escotilha do elevador de desembarque do invulnerável fendeu-se em seu bojo inferior quando o flutuador ingressou sob a sombra da belonave.
Meu veículo pára a poucos metros do orifício.
Salto do flutuador e caminho até a escotilha do elevador com passos cautelosos, ainda não inteiramente acostumada à gravidade reduzida de Bollrz. O ar frio e ralo do final dessa tarde de verão assemelha-se mais ao do topo das cordilheiras de Norgall. A brisa gélida arrepia meus pelos e a reação ativa o controle térmico de meu traje.
O cheiro seco e arenoso típico do Continente Austral desse mundo árido me invade as narinas, produzindo uma coceira suave e não de todo desagradável na extremidade do focinho.
Tento vasculhar o interior da câmara de desembarque do invulnerável. Mesmo com auxílio de meus dispositivos de ganho visual, não há muito o que ver. Ainda não há sinal dos humanos.
— Onde estão eles? — Murmuro a meus sistemas.
"Contato com o programa-mestre da Belerofonte. O Conselheiro Magnus envia saudações e pede para avisar que ele e os outros dois humanos em breve se reunirão consigo."
Sem nada a fazer, aguardo o aparecimento de nossos aliados.
—oOo—
Segundo os n'ghartfs, os jkleii já haviam predado nosso setor da Periferia há cerca de 150.000 anos, numa época em que tanto nós quanto os humanos sequer sonhávamos emergir de nossas pré-histórias monoplanetárias. Na ocasião, essa raça homeotérmica de predadores nômades realizou um ataque em massa aos sistemas habitados pelos n'ghartfs e demais espécies confederadas.
Já àquela época, os jkleii singravam a Periferia em seus Peregrinos, gigantescas naves estelares cilíndricas com as dimensões de pequenos planetas — as maiores possuíam até 2.000 Km de comprimento, 600 Km de diâmetro e população estimada em 200 milhões de habitantes.
A Primeira Invasão foi empreendida por uma frota de cerca de 300.000 Peregrinos... Trezentos mil mundos artificiais praticamente inexpugnáveis!
Os n'ghartfs e seus associados presenciaram impotentes quando os jkleii arrasaram sistemas estelares inteiros, não apenas à caça de conhecimentos e bens tecnológicos para nutrir sua cultura parasitária, mas também em busca de matérias-primas para construir mais Peregrinos e elementos leves para alimentar os conversores dos gigantes cilíndricos já existentes.
Ao longo das sete décadas da Invasão, os jkleii produziram danos terríveis no interior da superfície fronteiriça confederada. Foram responsáveis pela extinção de três das quatorze espécies que outrora integravam a Confederação N'ghartf e atrasaram em vários milênios o desenvolvimento técnico-cultural das sobreviventes.
Contudo, não obstante a índole pacífica dos n'ghartfs e seus associados, eles lutaram como puderam. Após a destruição de centenas de mundos habitados em muitos sistemas estelares confederados, os invasores foram afinal expulsos dos domínios n'ghartfs, graças ao advento mais do que oportuno dos canhões de radiação hipercósmica.
Uma vez munidos dessas armas fantásticas, os pseudo-insetóides exerceram retaliação maciça contra o inimigo, destruindo milhares de Peregrinos, cujos campos defensivos, outrora impregnáveis, puderam ser rompidos como se fossem feitos de folhas de alumínio.
Meu módulo de memória traz de volta a recordação vívida e perfeita de um velho holo histórico n'ghartf que assisti quando era pouco mais que uma cria.
Unidades máximas n'ghartfs, dezenas de octaedros minúsculos, a revoar céleres como abelhas furiosas em torno de cada gigante inimigo. As rajadas coerentes de partículas aceleradas a velocidades muito próximas à da luz atingindo seguidamente os pontos fracos dos longos cascos cilíndricos dos Peregrinos, penetrando no âmago de seus conversores de matéria e os fazendo explodir feericamente, como miríades de novas singulares. Em seguida, a revoada dirigia-se ao próximo Peregrino, repetindo a mesma operação dezenas de vezes...
Apesar da vitória confederada, a Primeira Invasão produziu traumas profundos na cultura n'ghartf.
Esse trauma ajuda a explicar a simpatia imediata dos n'ghartfs pelos ry'whaxers.
Como os jkleii, e ao contrário dos povos confederados e dos ry'whaxers, nós e os humanos somos criaturas homeotérmicas. Daí, imagino que os pseudo-insetóides devam ter se sentido solidários com aquele vasto núcleo de civilização galáctica subitamente acossado por bárbaros homeotérmicos agressivos... Não espanta terem presenteado os ry'whaxers da Grande República de Sglanghen com o projeto dos canhões hipercósmicos.
Agora, os jkleii estão de volta.
Onde estiveram nestes últimos 150 milênios, não sabemos.
No entanto, por onde quer que tenham vagado, devem ter aprendido a construir sua própria versão dos nossos defletores Gul com alguma espécie alienígena.
Ainda que empregássemos os canhões hipercósmicos oferecidos pelos n'ghartfs, não seríamos capazes de destruir os Peregrinos como os pseudo-insetóides o fizeram quando puseram fim à Primeira Invasão.
Pelo fato de seus feixes-graser viajarem pelo não-espaço, materializando-se no interior dos campos defensivos inimigos, os canhões de transição concebidos por Michael O'Bradley permanecem efetivos contra os jkleii. Contudo, como não possuem nem de longe o mesmo poder ofensivo dos artefatos n'ghartfs, as armas mais poderosas de nossos arsenais raramente conseguem alvejar mortalmente um Peregrino.
Contudo, apesar de terem se tornado praticamente indestrutíveis, nesta Segunda Invasão os colossos cilíndricos estão se comportando de maneira mais cautelosa desta vez.
Afinal, quatro décadas se passaram e, apesar das evacuações planetárias maciças e das inúmeras derrotas e bilhões de baixas, nenhuma espécie se extinguiu...
Não obstante o fato de agora a frota jkley possuir quase um milhão de unidades!
—oOo—
Nem preciso consultar meu implante mnemônico para lembrar cada palavra da declaração indignada da alta-hierarca Riph-Fow, minha mentora política, naquela mesma reunião da Hierarquia de Governo em Norgall, onde fui escolhida para acompanhar Odysseus Magnus em sua presente visita a Caril.

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Se os Olhos Pudessem Matar...

Daniel Alvarez escreveu:

 

A Filha do Predador

Writers (Brasil)

1999

(leia a crítica de Jorge Candeias)