R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Se os Olhos Pudessem Matar...

por Daniel Alvarez

conto publicado em 24.09.2001

republicado em 31.01.2004

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O segundo humano, Maria Morgan, é uma fêmea com longa pelagem craniana de coloração clara. Seus batimentos cardíacos reduzidos, as estruturas óssea e muscular reforçadas, seu cheiro inconfundível e a elasticidade de seus movimentos levam-me a concluir tratar-se de uma natibélica, uma humana cujos antepassados foram geneticamente condicionados para enfrentar as agruras dos combates planetários durante a Guerra.
A farda de um verde discreto informa que Maria é uma oficial-cientista da Federação. Ela porta as insígnias de major, mas há um círculo de prata diminuto sobre a teta esquerda (Lembrando sempre que as humanas possuem apenas um par e não três). Não sei o que esse círculo significa, mas meu módulo de memória explica que se trata do símbolo do Serviço de Inteligência da Federação. Considero a presença de uma oficial da inteligência humana na comitiva do conselheiro no mínimo inusitada.
A oficial cheira a fêmea humana e também a essências e óleos naturais, uma mistura suave e delicada, bem distinta do odor agressivo da loção do conselheiro.
Embora Magnus pareça ostensivamente maior e mais forte que Maria Morgan, as fibras musculares concentradas da natibélica e seu metabolismo acelerado concedem-lhe a força de vários humanos normais. Considero diplomática a decisão de enviar um conselheiro normal acompanhado por uma oficial muitas vezes mais ágil e vigorosa do que ele. Imagino que o Conselho Supremo da Federação não tenha dado ouvidos ao Departamento de Xenologia Aplicada da Terra, ou alguém de lá lhe teria explicado que teria sido mais diplomático e sensato simplesmente enviar a Caril uma conselheira...
Sou obrigada a aceitar a palavra do conselheiro quando ele afirma que o terceiro humano é um jovem macho. Se a natibélica já me pareceu neomórfica com a epiderme glabra, os glóbulos oculares espelhados e a musculatura saliente sob o uniforme justo, o que dizer dessa criatura que, pela idade informada, sequer saiu da adolescência, embora seja difícil julgar, visto que, como neomorfo radical, sequer pareça humano?
Não fossem as explicações do hierarca humano, eu juraria que o jovem introduzido como Cidadão Mucius Cisalpinus é membro de uma nova espécie alienígena recém-contatada. Assumido como humano neomorfo, sua aparência passa de neutra a medonha: uma massa disforme e pulsante de carne avermelhada, plástico e metal, com tronco elipsóide, pernas e braços finos e rígidos como varetas e um crânio protuberante revestido por um capacete maciço enorme, repleto de controles e indicadores.
Seu cheiro sabe mais a alienígena do que a humano... Por um instante chego a cogitar que o jovem talvez seja um híbrido humano-alienígena, com um travo de biomecanismo adicionado à mistura.
Ele veste uma espécie de armadura que brilha num branco leitoso e não possui quaisquer indicativos de cargo ou patente.
Mal consigo distinguir as batidas do coração desse jovem anômalo ante à miríade de ruídos — alguns de natureza inequivocamente artificial — provindos de suas entranhas.
— Fale-nos sobre os planos da Federação para estancar a Invasão Jkley. — Articulo num latim ríspido, em flagrante quebra de protocolo, numa tentativa vã de afogar minha perturbação com a aparência do adolescente humano. — A mensagem que recebemos insinuava que a humanidade já dispõe dos meios para derrotar os invasores.
— Devo presumir que a hierarca está em contato com seus pares.
Concordo com a suposição do conselheiro com um leve abanar de orelhas e ele continua:
— De fato, nosso Conselho Supremo já considera a crise jkley praticamente superada. — Odysseus Magnus pisca seus olhos grandes de glanderk, contrariando minha expectativa, ele não recorre a rodeios, mas vai direto ao ponto. — Estamos de posse, aqui mesmo, da arma que nos conduzirá a Associação Livre à vitória definitiva.
— Aqui mesmo? — Não consigo esconder a incredulidade. — Então vocês obtiveram afinal a colaboração dos n'ghartfs para adaptar os fluxos transicionais aos canhões hipercósmicos... Vosso invulnerável já recebeu os novos sistemas de armas?
— Ah, não exatamente. Acho que está havendo uma confusão. — Magnus franze a testa achatada antes de explicar. — Conforme os estudos conjuntos com os n'ghartfs indicaram, a fusão dos princípios dessas duas armas não é tarefa simples. Ao que tudo indica, não teremos tempo para uma empreitada deste tipo.
— Mas, então, qual é o teor dessa arma revolucionária?
— Viemos até Capella exatamente para demonstrá-la.
— Compreendo. Mas não seria possível pelo menos adiantar em que princípio se baseia essa arma?
A humana emite um som rouco inarticulado com a garganta. Aquilo que essa espécie denomina "pigarro". O conselheiro olha para ela e balança a cabeça no típico gesto humano de concordância.
A oficial toma a palavra para explicar:
— Poderíamos falar sobre o funcionamento dessa... arma... ainda hesito em chamá-la assim. Mas é bem provável que vocês não acreditassem em nossas palavras. Pelo menos, não sem provas, e devido à natureza heterodoxa, por assim dizer, desse recurso, nós nem poderíamos culpá-los se não nos levassem a sério. Por isso, depois de pensar a respeito, o Conselho Supremo julgou que o método mais rápido de convencer nossos aliados seria através de uma demonstração prática.
Examino os semblantes do conselheiro e da oficial-cientista. Escuto suas freqüências cardíacas. Ambos cheiram a sinceridade.
Agora compreendo a presença de um membro do serviço de inteligência da Federação.
— Que grau de sigilo deverá ser mantido ao longo dessa "demonstração prática"?
Maria e Odysseus trocam olhares. O conselheiro pisca os olhos brilhantes e responde:
— Esperamos contar com a presença maciça dos meios de comunicação de toda a União Carily e dos correspondentes alienígenas residentes em Capella.
Coço o focinho, nervosa. Presença maciça dos meios de comunicação? Correspondentes alienígenas? Isto não vai ser fácil...
Durante todo esse nosso agradável colóquio informal ao pé do elevador de desembarque do invulnerável, o jovem Mucius Cisalpinus permaneceu calado e absorto em fitar a linha do horizonte com ar ausente. Como se nada do que discutimos lhe dissesse respeito.
Nem o conselheiro, nem a major me explicam que papel o jovem neomorfo desempenha nesta visita diplomática sui generis.
Mais atordoada do que curiosa, abro mão das perguntas.
Ah, as idiossincrasias humanas...
Uma espécie tão brilhante e, ao mesmo tempo, tão imatura e tão repleta de fraquezas e contradições.
Pobres humanos! Jamais serenos ou plenos. Sempre dominados por seus eternos torvelinhos de emoções...
Franzo o focinho, inquieta. Estou mais preocupara é com essa tal demonstração.
Convido os humanos a ingressar no flutuador automático que nos aguarda.
Durante o percurso curto até os prédios do controle do astroporto, Odysseus e Maria explicam o que vão precisar para a demonstração.
Cada vez mais preocupada, ainda do interior do veículo estabeleço contato com a hierarquia planetária e requisito uma espaçonave para nos conduzir até Norgall.
Espero que esses humanos saibam o que estão fazendo.
—oOo—
Após doze horas de uma viagem demorada e cansativa que qualquer nave estelar antiquada teria empreendido em questão de minutos, chegamos ao presídio especial para entidades alienígenas em a União mantém em Grawuff, o maior dos satélites naturais de nossa bela Norgall.
Nesse aspecto seguimos o exemplo dos humanos que, na época da Guerra, instalaram diversos presídios em Luna para prisioneiros ry'whaxers e n'ghartfs. Jamais tivemos tantos prisioneiros de guerra quanto a Federação mas, ainda assim, nosso presídio especial chegou a operar próximo da capacidade máxima durante os últimos séculos da Guerra. Com o término do conflito, as instalações estiveram para ser desativadas por duas ou três vezes. Contudo, graças ao boom turístico do pós-Guerra, o presídio acabou transformado em museu.
Com a Invasão Jkley, o velho presídio alienígena recuperou seu propósito original.
Mantemos por aqui pouco mais de uma centena de jkleii que os comandos de resgate de nossas belonaves conseguiram capturar com vida.
Fui obrigada me valer de toda a autoridade inerente a meu cargo para burlar os trâmites da burocracia de Grawuff. Não nego que o Conselheiro Magnus tenha ajudado bastante, intervindo de forma decisiva em duas ou três ocasiões mais espinhosas.

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Se os Olhos Pudessem Matar...

Daniel Alvarez escreveu:

 

A Filha do Predador

Writers (Brasil)

1999

(leia a crítica de Jorge Candeias)