Se os Olhos Pudessem Matar...
por Daniel Alvarez
conto publicado em 24.09.2001
republicado em 31.01.2004

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Caminhamos aos saltos no ambiente climatizado sob a cúpula do presídio. A baixa gravitação de Grawuff não parece incomodar minimamente os dois humanos adultos, embora o jovem Mucius não pare de emitir piados agudos intermitentes para exprimir seu desconforto.
Nossa excelsa líder de governo escolhe este exato instante para me contatar pessoalmente a partir de Norgall, distante uns meros dois segundos-luz deste satélite.
"O que você está pretendendo, Rarrff?" — Ela ribomba sem preâmbulos em meu endocomunicador no seu melhor tom abrupto habitual.
— Precedente Taw-Bahrur, os humanos desejam demonstrar o poder ofensivo de sua arma revolucionária. — Odysseus e Maria fitam-me sem entender o significado de minha fala, visto que articulo direto em carily. Ambos subvocalizam ordens ríspidas entre os dentes a seus trajes, provavelmente para solicitar traduções simultâneas a seus endoprocessadores. Suspiro e continuo: — Eu e o Conselheiro concordamos quanto à conveniência de empregarmos cobaias jkleii.
A pausa se estende bem mais do que os poucos segundos que poderíamos atribuir à mera distância de Norgall. Quando a resposta enfim retorna, o tom preocupado da hierarca ecoa em minha cabeça:
"Essa arma está aí em Grawuff com eles?"
Fito Magnus e ele me responde com o gesto humano de assentimento.
Confirmo laconicamente a presença da arma.
"E por que todo esse rebuliço da imprensa de Norgall, viajando às pressas para aí ou entupindo todos os canais de telepresença? Um absurdo!"
— Faz parte do plano que estabeleci com os humanos, Precedente. Recebi há pouco as aprovações de nossa Hierarquia Científica e do Alto-Comando da Armada Conjunta.
Este último argumento cala fundo no espírito de nossa líder suprema. Embora a atual comandante geral da Armada Conjunta seja uma carilybit, o Alto-Comando não representa somente os interesses da cariléia, mas também, e sobretudo, os da humanidade.
Com um resmungo mal-humorado, a líder encerra o assunto:
"De acordo, então. Assuma o controle da situação desse lado aí. Você tem autorização para prosseguir."
Sim, claro! Como se eu não soubesse...
Apesar da terrível expectativa, confesso-me bastante gratificada por fazer essa velha política de carreira, que sempre apoiou as iniciativas da Federação Humana por mais estapafúrdias que fossem, engolir um pouco de seu próprio remédio.
—oOo—
Resignada, a diretora do presídio recolhe a cauda e esfrega o focinho ante meu suspiro de triunfo.
Quinze minutos mais tarde, estamos frente a frente com os prisioneiros jkleii.
Frente a frente é modo de dizer, pois há um escudo energético quase invisível nos separando dos invasores.
Eu, a diretora do presídio e nossos três convidados humanos estamos próximos à muralha transparente do escudo. Há uma multidão de carilybits da imprensa afastadas de nós por um cordão de isolamento disposto doze metros a nossas costas. Vislumbro cerca de uma dúzia de repórteres humanos misturados às nossas holografistas, bem como uns cinco ou seis observadores alienígenas, dentre os quais dois pseudo-insetóides n'ghartfs e um centauróide birnax.
Odysseus contempla os jkleii com seus olhos gigantescos.
As criaturas expostas atrás do escudo defletor são de fato impressionantes! Possuem dezenas de antenas no topo do crânio. Segundo ouvi dizer, algumas dessas antenas atuam como os olhos multifacetados dos n'ghartfs; outras agem como sensores auditivos ou olfativos.
Os jkleii direcionam as antenas em nossa direção. Talvez seja apenas imaginação minha, mas aposto que nos examinam com a arrogância gelada de quem se julga superior.
E por que não?
Afinal, esses cento e poucos indivíduos são representantes de uma espécie antiqüíssima, cujos antepassados já haviam destruído dezenas de civilizações mais poderosas do que a cariléia ou a humanidade numa época em que ainda cultuávamos os astros e as forças da natureza como deuses...
Seus corpos altaneiros e oblongos, recobertos por camadas esverdeadas de penas finíssimas, mantinham-se imóveis a um metro da superfície vertical do campo energético. Seus semblantes alienígenas, silenciosos e inescrutáveis.
As carilybits do presídio foram instruídas a explicar aos prisioneiros que eles assistiriam uma demonstração da arma que os faria implorar pela paz. Alguns poucos jkleii emitiram seu equivalente de sonoras gargalhadas, mas a maioria manteve-se impassível.
"Como ousam esses humanos bravos mas insanos," — pensei com um travo de amargura, — "imaginar-se capazes de enfrentar uma espécie mais antiga e mais sábia, cujos efetivos são mais de cem vezes superiores aos nossos e cuja Armada é centenas de vezes mais poderosa do que qualquer força que a Associação pode sonhar reunir?"
Notando meu estado de espírito, meu módulo processador intervém:
"Mas os humanos já fizeram isto antes! Não conheciam sequer a navegação pelo não-espaço e mal haviam explorado os recônditos de seu próprio sistema, mas se atreveram a desafiar um império que se estendia pelo espaçotempo afora... o Império Ry'whax, erigido por um povo outrora senhor absoluto de toda uma larga fatia da periferia galáctica."
O Conselheiro interrompe minhas divagações de forma abrupta, ao afirmar:
— Nossa arma é esse humano. — Ele aponta para Mucius Cisalpinus, que continua imerso numa armadura de indiferença. — mais frágil e singelo que uma bateria geradora de singularidades e, no entanto, muito mais complexo e mortífero.
Há um burburinho de espanto no grupo aglomerado às nossas costas. Lanço um olhar para trás e constato surpresa também nos semblantes dos repórteres humanos.
Só pode ser brincadeira!
Odysseus Magnus faz pouco caso de minhas orelhas e cauda que se agitam indignadas, e continua jogando para a platéia:
— Esse é Mucius Cisalpinus. Pouco mais que uma criança, com 35 anos incompletos. Um rapaz humano aparentemente normal em todos os sentidos. — Noto a ênfase intencional no "aparentemente". No que me diz respeito, "deformado" seria o termo apropriado. Odysseus continua descrevendo o adolescente: — Mucius é o que as gerações mais novas costumam a chamar de "neomorfo". Como vocês decerto não ignoram, há mais de meio milênio várias culturas humanas decidiram abandonar nossa morfologia primata tradicional. Contudo, o fato é que, antes de nascer, esse jovem sofreu algumas manipulações genéticas radicais que...
— Poupe-nos da preleção científica, Conselheiro. — Disparo, rosnando baixinho, em meu último laivo de autocontrole. — Todos conhecemos o velho e discutível hábito humano de introduzir modificações pré-natais no programa genético de sua prole. Ao que nos consta, os próprios natibélicos foram criados assim, não é? No entanto, não consigo compreender como um único humano, por maiores que sejam seus talentos físicos e mentais, possa representar qualquer diferença significativa entre a derrota e a vitória...
— Se não entende, minha amiga, é sinal que chegou a hora da demonstração. Mostre a elas, Mucius.
O jovem enfim exibe uma reação ao mundo externo. Levanta o braço direito e aponta para os jkleii. As atenções se desviam para os prisioneiros.
Com um canto de olho, observo as feições do adolescente modificando-se pouco a pouco. O olhar torna-se duro e penetrante. Os olhos se abrem, tornando-se quase tão grandes quanto os do conselheiro. Sua fisionomia assume um aspecto decidido e, tanto quanto posso dizer, um ar cruel, à medida que seus maxilares cerram-se trincados um sobre o outro.
Mucius fita diretamente os prisioneiros jkleii. Mesmo observando-o de lado, sinto como se uma forte carga emocional jorrasse do neomorfo para os invasores. Só impressão minha, é claro. Mas é uma sensação intensa a ponto de repuxar minha cauda e arrepiar os pelos de minhas orelhas e nuca. Um olhar de ódio em estado puro, como as Antigas costumavam dizer...
Se o olhar pudesse matar, esses jkleii estariam caídos, a estrebuchar sobre o piso.
Então é justo isto que acontece!

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