R e v i s t a . e l e c t r ó n i c a . d e . f i c ç ã o . c i e n t í f i c a . e . f a n t á s t i c o

Se os Olhos Pudessem Matar...

por Daniel Alvarez

conto publicado em 24.09.2001

republicado em 31.01.2004

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"Todos os sistemas carilys e humanos, bem como os principais sistemas dos birnaxs e dos n'ghartfs estão resguardados da ação predatória dos Peregrinos, graças à presença das baterias geradoras de singularidades.
"O mesmo não se dá, no entanto, com os quase 30 mil sistemas estelares habitados pelas demais raças aliadas, membros antigos e recentes da Associação Livre...
"Nossos estrategistas estimam que seriam necessárias em média de treze a quinze baterias geradoras para defender cada um desses sistemas...
"Ora, estamos falando de 450 mil baterias geradoras de singularidades! Um número mais de 100 vezes maior do que a quantidade já instalada pela humanidade nos últimos 1.600 anos.
"Prezadas irmãs de clã e de credo, estamos diante de um impasse. Caso não consigamos uma solução satisfatória, é bem provável que dentro em breve nós, os humanos, os n'ghartfs e mais uma meia dúzia de outras espécies privilegiadas, tornemo-nos as únicas remanescentes da — diremos então — outrora pujante e florescente Associação."
Riph-Fow fez uma pausa de efeito, aproveitando para tomar fôlego.
Gham-Bedech, uma hierarca do Partido da Aliança, valeu-se da oportunidade para erguer-se da banqueta oblonga enfileirada na ala de seu partido e menear a cabeça recoberta de pelos fulvos, numa solicitação tácita para se manifestar.
Riph-Fow assentiu com um ligeiro tremor das orelhas hirsutas, ao que a hierarca mais jovem questionou:
"Gostaria que nos informasse, ó honorável, o que existe de verdadeiro no boato que corre por toda Norgall de que um batalhão humano constituído por natibélicos e guerreiros biomechs teria conseguido tomar um Peregrino de assalto."
Do alto de sua tribuna, Riph-Fow fitou a opositora mais jovem em silêncio. Alisou os pelos negros e lustrosos das faces com ambas as patas, mantendo o ar fleugmático habitual. Sem o menor sinal de pressa, piscou os olhos já vermelhos devido à idade avançada. Suspirou. Dentro em breve deverá decidir se deseja ou não habitar um corpo mais jovem. Ajeitou a toga branca de linhas sóbrias com gestos calmos e calculados. Sacudiu as orelhas recobertas de pelos negros, demonstrando enfim um assentimento algo relutante:
"De fato. Um comando composto por 10.000 natibélicos acompanhados por 50.000 bio-robôs conseguiu tomar uma dessas naves gigantescas, a despeito de lutar contra 200 milhões de jkleii sob uma gravitação reduzida de apenas 0,6 G. Uma empreitada heróica, mesmo quando levamos em conta todos os numerosos relatos de proezas improváveis efetuadas pelas forças de choque natibélicas dos tempos da Guerra.
"Tal façanha, porém, revelou-se de todo inútil. Tão logo se perceberam sem o domínio da nave-mundo, os comandantes jkleii ativaram um mecanismo de autodestruição, transformando o colosso cilíndrico numa nuvem de gás incandescente de dimensões planetárias..."
Riph-Fow fitou as companheiras de partido e também as adversárias do partido situacionista. Ante a gravidade da ameaça, já não havia espaço para situação ou oposição. Deviam irmanar-se todas numa mesma cruzada sem esperança.
Denotando enfim todo o desânimo e cansaço acumulado nesses últimos anos de perdas terríveis, a alta-hierarca baixou as orelhas, sentou-se com ar derrotado e concluiu em tom rouco:
"Ninguém na União Carily se ilude em imaginar que nossa Armada Conjunta, com efetivos que não chegam a 8.000 invulneráveis e 90.000 couraçados, possa fazer frente a uma frota de um milhão de naves do tamanho de planetóides... Não quando se sabe que cada Peregrino dispõe de campos defensivos quase inexpugnáveis e aparato ofensivo capaz de engajar e destruir uma esquadra inteira de couraçados em questão de segundos...
"Os humanos dizem possuir uma nova arma que porá fim à Segunda Invasão...
"Eu digo: a máquina de propaganda da Federação desandou feio desta vez!"
—oOo—
Ao fitar o Conselheiro Magnus junto à escotilha de desembarque do invulnerável, relembro visceralmente algo que muitos leigos talvez só intuam a partir dos holos históricos e noticiosos: como os humanos são parecidos com nossos glanderks!
Não surpreende que nos tenhamos dado tão bem com eles e confiado tanto em suas declarações incríveis desde o primeiro contato, há mais de mil anos.
Apesar dos humanos não possuírem a pelagem azulada característica dos glanderks, tampouco o mesmo aroma almiscarado pungente e serem, é claro, muito maiores que nossos animais de estimação prediletos, têm os olhos grandes e posicionados na frente de uma face achatada, à semelhança dos glanderks. É sabido que os humanos evoluíram a partir de animais homeotérmicos de visão binocular aguda, como os glanderks. Por isto, os humanos primitivos jamais precisaram domesticar um animal com olhos penetrantes para auxiliá-los em suas primeiras caçadas paleolíticas, como as carilybits precisaram dos glanderks.
Talvez como compensação por sua visão aguçada, os humanos possuem olfato e audição pouco desenvolvidos quando comparados com nossos sentidos. Por isso, o animal que elegeram como companheiro de caçadas foi a cadela, um quadrúpede homeotérmico carnívoro dotado de olfato e audição quase tão sensíveis quanto os de uma carilybit.
Alguns humanos ainda insistem em afirmar que as cadelas são parecidíssimas conosco. A alegação é claramente absurda. Pois embora a pelagem corporal e a estrutura craniana básica das cadelas sejam de fato vagamente semelhantes às das carilybits, tais animais são quadrúpedes, e não bípedes como nós, os humanos e os glanderks.
Por outro lado, é bem provável que, ao nos julgar parecidos com seus animais de estimação favoritos, os humanos tenham sentido pelas carilybits a mesma confiança inicial que neles depositamos. Segundo eles, é como se houvessem viajado 40 anos-luz do Sol até Caril, apenas para reencontrar a "melhor amiga dos humanos" sob forma bípede e racional.
Tamanha coincidência cósmica, suposta obra de uma evolução convergente, foi o primeiro passo para aproximar a cariléia de nossos mais antigos e fiéis aliados.
Desde os primórdios da Guerra Ry'whax, aprendemos a confiar cegamente nos humanos, da mesma forma que nossas antepassadas pré-históricas confiaram o êxito das caçadas à visão acurada dos glanderks. Outros membros da antiga Aliança de Extermínio sempre julgaram difícil compreender nosso relacionamento quase simbiótico com os humanos. Não entendiam como era possível que carilybits e humanos colaborassem tão bem. Como nossos planejamentos político, científico e militar conseguiam se complementar de forma tão íntima, a ponto de quase não haver segredos ou reservas entre nossos dois povos, a ponto de tripularmos juntos as mesmas belonaves e colonizarmos juntos os mesmos planetas.
—oOo—
O conselheiro com fisionomia de glanderk pisca seus olhos grandes e brilhantes, separados apenas pelo mais vestigial dos focinhos, uma organela minúscula, em termos relativos ainda menor do que os de nossos animais de estimação.
Ele exala não o almíscar dos glanderks, mas um aroma curioso que aprendi a associar a machos humanos que vivem em planetas de atmosfera oxigenada.
Num latim incisivo bem pronunciado, o conselheiro introduz a si próprio e a seus dois companheiros. Os três humanos vestem trajes inteiriços que ocultam seus corpos quase inteiramente, deixando de fora apenas a cabeça e o pescoço.
Odysseus Magnus possui a aparência física exterior que os humanos costumam definir como paleomórfica, no sentido de que sua morfologia não foi alterada quer pelas artes da manipulação genética, quer por implantes biônicos externos. Tem estatura elevada para um humano, sendo quase tão alto quanto eu. A compleição musculosa e seus batimentos cardíacos compassados indicam que Magnus foi concebido ou criado num planeta de gravitação um pouco mais elevada do que a Terra ou Norgall. Magnus veste o traje negro oficial comum aos membros de todos os conselhos da Federação.
Ah, o Conselheiro Magnus é um humano macho. Imagino que hoje em dia, mais de um milênio e meio após o Contato, pouca gente estranhe o fato de que entre os humanos, os machos da espécie sejam quase tão inteligentes quanto as fêmeas...
O conselheiro cultiva uma "barba" curta bem tratada (isto é, um trecho de pelagem facial presente sobre as mandíbulas de vários machos humanos). À medida que ele fala, percebo nuances em seu aroma corporal; um cheiro claramente artificial, aquele tipo de perfume ou loção que os humanos decerto julgam agradável, embora produza a sensação intensa de cócegas no interior de nossas narinas...

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Se os Olhos Pudessem Matar...

Daniel Alvarez escreveu:

 

A Filha do Predador

Writers (Brasil)

1999

(leia a crítica de Jorge Candeias)